Pena de morte e porte de armas: solução para o cristão?

arma1Tenho visto com apreensão um crescente entusiasmo com as teses relacionadas ao porte de armas (indo além da posse) e da pena de morte. Em 2008, 47% da população brasileira era favorável à pena de morte. Dez anos depois, esse número aumentou para 57% da população (confira). A sensação de aumento da violência, os diversos casos de crimes hediondos, tudo isso faz aumentar a demanda por uma ação mais enérgica a fim de coibir o mal. Não quero entrar aqui na enorme discussão política, na queda de braço entre esquerda e direita sobre a questão. Gostaria de fazer apenas uma breve meditação sobre o assunto.

Eu, do ponto de vista particular, teria várias razões para ser favorável à pena de morte e ao porte de armas. Em 2013, meu sogro foi covarde e brutalmente agredido, dentro de seu sítio, na frente da minha sogra, com pauladas na cabeça, por ladrões, enquanto minha sogra assistia a tudo desesperada com uma faca no pescoço. Ele, em dores agonizantes, levou 14 horas em transporte de barco e carro, desde a agressão até ser atendido na capital.

Viajei desesperadamente e passei uma semana ao lado dele em uma UTI no Amazonas. Foram dias de agonia. Ele acabou evoluindo para morte cerebral. Foi chocante ver tudo, inclusive conduzi-lo para a necrópsia. Naquele momento me ocorreram muitos pensamentos associados à profunda revolta e frustração que sentia (em menos de duas semanas ele conheceria pessoalmente meu filho mais novo, o que nunca aconteceu). Esses pensamentos poderiam ser considerados extremamente justos do ponto de vista humano. O mais simples seria relacionado a essas duas crenças sobre pena de morte e porte de armas. O suspeito foi preso após algum tempo, mas liberado por falta de provas (na verdade, uma ausência de condições da polícia local, à qual doamos até gasolina para as lanchas fazerem diligências). Enfim, meu ser em cada fibra teria razões de sobra para ser a favor da pena de morte e do porte de armas. Mas, como uma luta pessoal, minha mente e minha razão religiosa me falavam o contrário. É interpretativo? Pode ser.

No Israel antigo, o Autor da Vida tinha razões diretas para determinar se uma pessoa, família, cidade, nação deveriam viver ou morrer. O sistema legislativo havia sido ditado por Deus. Em alguns casos, dispunha-se da vontade sobrenatural expressa por uma ordem a um profeta, ou mesmo recorrendo ao Urim e Tumim, um sistema binário de resposta disponível ao sacerdote. Eu não tenho esse oráculo.

Para mim, como médico com formação como intensivista, seria muito mais fácil entender as razões de usar uma arma. Estou acostumado a ver pessoas no fim da vida por dezenas de razões. Mas, mesmo assim, minha formação me lembra dos riscos para a minha igreja relacionados com os dois pressupostos.

Decreto de morte é algo que nos últimos dias será imputado ao povo remanescente de Deus. É contraproducente estimular um arcabouço legal que justifique a tomada da vida, e que daqui a alguns anos poderá ser usado contra nós ou nossos filhos.

Muitos têm se entusiasmado, inclusive entre o povo adventista, com o “direito às armas”. Olham com empolgação o modo de pensar do conservador evangélico norte-americano. Mas se esquecem de um detalhe: o evangélico comum, dispensacionalista, é ensinado a ver que no pós-arrebatamento terá que pegar em armas pelo Armagedon. Que o anticristo vai ser o secretário geral da ONU. Que terão que se organizar em milícias. Por isso o norte-americano evangélico ama as suas armas e a Segunda Emenda da Constituição americana.

Um dos maiores exemplos diante da sociedade americana quanto à filosofia adventista sobre armamento foi o do soldado que não pegava em armas Desmond Doss. E o que você acha que tornou aquele moço um herói? Não foram as pessoas que poderia ter matado, mesmo que sob aparente propósito justo. Seu testemunho vivo e irrepreensível das 75 pessoas que salvou sem o uso de armas é uma lição da qual não podemos esquecer: somos um povo especial cuja guarda aos mandamentos de Deus não alude somente ao quarto, mas a todos os mandamentos, incluindo o sexto.

Você percebeu que até agora não falei de nenhuma razão política ou legal local? Mas vou acrescentar uma razão.

Nosso sistema político-legal, na prática, é oligárquico. A lei não se aplica igualmente a todos, quanto mais o atrito se destina aos extremos. Um filho de desembargador ou do empresário que cometa um crime hediondo tem menos chance de ir ao corredor da morte do que o filho da faxineira. Uma pessoa com certas “imunidades” práticas tem menos chance de receber justa sentença. Isso já é uma realidade para coisas tão “banais” quanto um “filhinho de papai” bêbado atropelar um trabalhador de bicicleta, decepando-lhe o braço e jogando no corrego, ou um delegado alcoolizado matar um advogado em uma boate.

Resumindo, se não considerarmos o ethos adventista (e friso que ele é diferente daquele de um evangélico tradicional), o porte de armas e a pena de morte seriam até uma necessidade, que são inviabilizados na prática pela ausência de uma rede de segurança social ou legal prática que coíba os excessos ou as injustiças pelo uso inadequado desses instrumentos.

Lembro, por fim, a instrução do apóstolo: “Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: ‘Minha é a vingança; eu retribuirei’, diz o Senhor” (Romanos 12:19).

Everton Padilha Gomes é médico cardiologista e doutor em Cardiologia pela USP