A obra de James Cone contém muitas ideias úteis na luta contra o racismo, mas pode representar um afastamento do ensino bíblico em alguns pontos.

Não podemos ser insensíveis às experiências e memórias dramáticas que moldaram a retórica e a teologia de Cone. O terror racial e o histórico de linchamentos e humilhações sofridos pelos negros nos Estados Unidos não podem ser deixados de fora de nossas abordagens teológicas à questão racial. Ainda existem teologias que servem à ideologia de supremacia branca, e estas devem ser continuamente denunciadas e combatidas, pois distorcem a Palavra de Deus em seus fundamentos.
Cone está totalmente correto ao afirmar que a “essência do evangelho em Cristo permanece ou recai na questão da humanidade negra e não existem formas de uma igreja ou instituição estar relacionada ao evangelho de Cristo e se apoiar ou tolerar qualquer forma de racismo”.[1]
A teologia negra, de maneira tocante, coloca um holofote sobre o vínculo histórico entre os negros e a fé em Jesus. Os negros escravizados e seus descendentes encontraram em Jesus “um amigo que conhece os problemas dos pequeninos e é a razão do ‘Aleluia’ deles”.[2] Como Cone aponta corretamente, a cruz está no centro da histórica espiritualidade cristã negra, pois também revela a solidariedade de Jesus com os negros em seu sofrimento.[3]
A teologia negra também contribui positivamente ao trazer para o ambiente eclesiástico a urgente discussão sobre o racismo.[4] Os recentes apelos por uma igreja que se levante mais abertamente contra o racismo são necessários, mas eles precisam ser feitos a partir de uma plataforma que não negue a autoridade das Escrituras. E é nesse ponto que, numa perspectiva adventista, a teologia negra apresenta características que merecem uma avaliação mais ponderada: a experiência negra não pode substituir a Bíblia como fundamento.
Dada a natureza deste artigo, certamente não é possível fazer aqui uma avaliação exaustiva de todo o corpus teológico de Cone (a escatologia, por exemplo, ficou de fora). Mas as citações utilizadas, que saltaram aos olhos em leituras prévias, parecem ser representativas da teologia negra. A obra de Cone contém muitas ideias úteis na luta contra o racismo, mas pode representar um afastamento do ensino bíblico em alguns pontos.
Para não cair no erro do anacronismo, a avaliação feita aqui procurou levar em conta o contexto histórico de cada declaração. Além disso, no prefácio da edição de 1997 de God of the Oppressed, Cone reafirmou o que havia escrito nos anos 1970: “Exceto pela incorporação de uma linguagem inclusiva, pouco mudou nesta edição [de 1997] de God of the Oppressed. Ainda representa minha perspectiva teológica básica.”[5]
Em poucas palavras, embora sua teologia tenha sido desenvolvida em fases, Cone não apresentou nenhuma drástica ruptura com suas visões teológicas iniciais. Ele apenas reafirmou e explicou melhor suas antigas convicções teológicas básicas numa retórica mais suave. Aparentemente, ele manteve o que escreveu em 1970, em A Black Theology of Liberation, até o fim da vida.
Além disso, suas posições mais preocupantes são explícitas. Um leitor não precisa conhecer toda a moldura teórica, histórica, e todos os detalhes conceituais da teologia de Cone para perceber que algumas ideias estão em oposição à Bíblia e ao espírito do evangelho. Em outras palavras, não é preciso um conhecimento profundo de história negra, Tillich, Barth ou Marx para perceber problemas nas ideias de Cone.
A cristologia da teologia negra é um ponto que também merece consideração. Como todas as teologias da libertação, a teologia negra coloca muita ênfase no aspecto humano de Jesus. Há uma identificação total e irrestrita entre Cristo e o ser humano. No entanto, o quadro cristológico completo encontrado na Bíblia traz um Cristo divino-humano, imanente e transcendente, que conhece a experiência humana, mas que é “o resplendor da Glória de Deus e a expressão exata do seu ser” (Hb 1:3 NVI), “santo, inculpável, puro, separado dos pecadores, exaltado acima dos céus” (Hb 7:26 NVI).
A pergunta de Jesus a Seus discípulos “quem dizeis que eu sou?” (Mt 16:15) precisa ser respondida sem rodeios não apenas pela teologia negra, mas por todas as teologias identitárias da libertação (feminista, queer, mulherista, etc.). O enfraquecimento de doutrinas como a autoridade das Escrituras, o pecado humano e a natureza de Cristo não são problemas exclusivos da teologia negra.
Cone afirma que “nossas ideias intelectuais sobre Deus, Jesus e a Igreja foram derivadas de teólogos brancos europeus e seus livros”,[6] e por isso é preciso construir “um novo movimento teológico”[7] sobre outras bases. Como exemplos de teólogos brancos que supostamente teriam moldado nossas ideias, Cone cita Barth, Tillich e Bultmann. E isso levanta a pergunta: Em nome de quem Cone fala quando diz que nossas ideias vêm desses homens? É inegável a influência desses teólogos brancos, mas é igualmente inegável que grande parcela do protestantismo e do evangelicalismo têm verdadeira aversão à teologia deles, especialmente setores mais teologicamente conservadores.
Além disso: O valor e a verdade de um argumento teológico dependem da origem étnica de quem fala? A verdade continua sendo verdade mesmo quando proferida por judeus do século 1, ou africanos como Atanásio e Agostinho, ou um asiático do século 21. Nos primeiros séculos da era cristã, as verdades bíblicas já ecoavam na Etiópia enquanto a Europa ainda era quase completamente pagã. Por outro lado, o próprio Cone reconhece que parte de seu pensamento foi construído sobre Barth e Marx (brancos europeus). Assim, a justificativa que Cone dá à necessidade de um novo movimento teológico baseado em critérios étnicos e raciais não parece ser um forte argumento.
O que a teologia negra faz, propositalmente ou não, é chamar doutrinas bíblicas centrais de “teologia branca”, e então descartá-las. Ronilso Pacheco, por exemplo, denuncia a “identidade branca da igreja que herdamos, ou a branquitude da identidade da mesma”, o que ele chama de “imaginário branco de ser igreja”.[8] Para ele, o que chamam erroneamente de “teologia de verdade” seria apenas uma visão teológica particular de nomes como Abraham Kuyper, James Orr e Wihelm Dilthey.
No entanto, essa descrição de Pacheco é parcial, e omite duas coisas importantes: (1) existem crenças ortodoxas historicamente compartilhadas por toda a cristandade desde a época em que a igreja cristã era composta majoritariamente por judeus oprimidos num império romano; (2) a teologia negra não está apenas rejeitando o neocalvinismo, o fundamentalismo ou a teologia colonial europeia da “igreja branca”, está rejeitando as crenças bíblicas centrais e históricas do cristianismo.
Levanto aqui algumas questões que podem ser úteis à reflexão sobre a teologia negra. Ao lançar mão da metodologia histórico-crítica, de pressupostos da teologia liberal, das categorias do pensamento marxista e das reflexões de teólogos como Tillich, Niebuhr e Barth – por que a teologia negra estaria isenta do problema da “branquitude”? Ou a branquitude só afeta os defensores da ortodoxia doutrinária?
Por que a crítica da teologia negra brasileira às “hermenêuticas engessadas, históricas e hegemônicas” e a defesa da teologia decolonial como uma resposta ao pensamento “eurocêntrico-estadunidense” não são afetadas pelo fato de se apoiarem nas “reflexões postas por James Cone, Jacquelyn Grant, Cornell West [sic], Gayraud Wilmore”,[9] todos eles estadunidenses? Isto é, não há nenhum problema no fato de a teologia negra brasileira ser uma novidade importada (com algum atraso) dos Estados Unidos? Não há nenhum problema de colonização em mimetizar discursos estadunidenses, categorias de análises surgidas no contexto estadunidense, e até importar neologismos da língua inglesa e incorporá-los à versão brasileira da teologia negra?
A denúncia do racismo entre as igrejas evangélicas é extremamente necessária. E algumas iniciativas nesse sentido têm levado a sério as questões históricas, sociológicas e teológicas, amparadas em dados estatísticos.[10] No entanto, existem denúncias feitas sem fundamentação, reproduzindo apenas senso comum e generalizações, como a afirmação de que a “igreja brasileira tem em seu DNA uma forte aliança com as mentalidades escravocratas do Sul dos Estados Unidos”, e coopera “para a manutenção de pensamentos racistas”, cuja hermenêutica é “um olhar branco europeizado”.[11] Há verdades nessas denúncias, mas isso inclui, generalizadamente, os pentecostais brasileiros? Inclui, indiscriminadamente, as diversas denominações historicamente abolicionistas e do Norte (como a IASD)?
O que fazer com a crença teologicamente conservadora dos negros (que são maioria nas igrejas evangélicas brasileiras[12])? Estaria a teologia das igrejas evangélicas e pentecostais (a religião mais negra do Brasil[13]) incluída nessas críticas? A crença histórica dos negros nas doutrinas ortodoxas, incluindo a crença na Bíblia como inspirada e infalível Palavra de Deus e na doutrina da expiação pelo sangue de Jesus, faz parte das “hermenêuticas engessadas” e “olhar branco europeizado”?
Em outras palavras: O que a teologia negra pretende fazer com o fato de a maioria dos protestantes e evangélicos negros, estadunidenses ou brasileiros, acreditarem nas principais doutrinas ortodoxas? Aqui surge novamente a pergunta: Se a teologia negra não representa a crença dos cristãos negros, quem ela representa?
Portanto, sob o pretexto de rejeitar a “igreja branca”, a teologia negra rejeita a doutrina dos apóstolos e do próprio Jesus, e a crença histórica de milhares de negros. Ao rejeitar a doutrina bíblica da expiação, da substituição, e remover a cruz do centro, dizendo que Jesus morreu “(quase) voluntariamente”, a teologia negra não está combatendo o ensino de uma suposta igreja branca, mas um ensino bíblico. Quando James Cone remove a Bíblia da base da teologia cristã e assume que sua experiência pessoal e comunitária é a base, ele não está rejeitando um ensino da suposta igreja branca, mas um ensino do Novo Testamento.
Ao vincular a revelação, a verdade e o conhecimento de Deus exclusivamente à teologia e à experiência negra, Cone gera uma espécie de “gnosticismo étnico”.[14] Acreditar que algumas pessoas, por causa de sua etnicidade, são capazes ou não de entender alguma verdade sobre Deus não encontra nenhum respaldo na Bíblia.
Firmado na autoridade da experiência negra, Cone reinterpretou conceitos bíblicos como revelação, verdade, pecado e evangelho de formas consistentes com seu projeto de libertação negra. Mas a falha central de sua teologia negra é exatamente essa insistência axiomática de que a Bíblia deve ser lida através das lentes da experiência negra. Um cristão bíblico adventista, de qualquer etnia, acredita que o texto bíblico tem significado objetivo e que a verdade revelada pode ser aprendida fora da experiência negra, ou da experiência feminina, ou de qualquer outra experiência identitária.
Como apontou o teólogo negro Anthony Bradley: “O que é mais desconcertante sobre a reflexão de Cone é sua falta de confiança nas Escrituras […] para fornecer ferramentas suficientes para analisar a cultura”.[15] O vínculo entre a teologia negra de Cone e o marxismo é inegável, e sua sugestão de que o marxismo seria o melhor método para ler a realidade tem implicações hermenêuticas sérias. De fato, um estudante da Bíblia precisa estar ciente das forças ideológicas que moldam a nossa cultura, mas não precisa escolher uma delas e transformá-la em autoridade máxima, ou numa lente para ler até mesmo a Bíblia.
Na epistemologia da teologia negra, as verdades da Bíblia são acessíveis apenas a certos grupos étnicos, e a experiência desse grupo está acima do lema protestante Sola Scriptura. Assim, a Bíblia não pode ser a única regra de fé e prática, e deve ser submetida a outro padrão de julgamento. Cristãos bíblicos simpáticos à teologia negra não podem continuar sem avaliar se isso é aceitável.
Finalmente, o pragmatismo de Cone também compromete a fidelidade à sã doutrina. A partir da pergunta pragmática “para que serve essa teologia?”, a Bíblia pode ser arrastada a qualquer tribunal hermenêutico, e julgada pela experiência, interesses e necessidades específicos de qualquer grupo. A superênfase na imanência, na transformação histórica, no aqui e agora, em vez de “uma nova vida no céu” [16] também pode fazer o peregrino cristão se preocupar demais com a estrada e esquecer o horizonte, o destino final.[17]
Embora a teologia negra ainda seja um movimento periférico no protestantismo e evangelicalismo brasileiro, é possível ouvir os ecos da teologia de Cone em publicações e discussões nas redes socias, especialmente entre jovens. Por isso, é interessante que os cristãos se familiarizem com sua obra, e avaliem as suas suposições, sua retórica, seus fundamentos e as consequências de aceitar suas sugestões teológicas.
(Isaac Malheiros é doutor em Teologia e aluno de PhD em Religious Education pela Andrews University)
Leia também as partes 1, 2, 3 e 4 (aqui).
[1] CONE, 2020b, p. 68.
[2] CONE, 2011, p. 21.
[3] CONE, 2011, p. 21.
[4] Para uma abordagem cristã à questão racial, que inclui reflexões sobre arrependimento, racismo sistêmico, reparação histórica e fim do pensamento etnocêntrico, ver PIPER, John. O racismo, a cruz e o cristão: a nova linhagem em Cristo. São Paulo: Vida Nova, 2012.
[5] CONE, 1997, p. xi.
[6] CONE, 1977, p. 148.
[7] CONE, 1977, p. 149.
[8] PACHECO, Ronilso. A igreja branca tem que acabar. Folha de São Paulo. 09 jan. 2020. Disponível em: https://bit.ly/341tmVV. Acesso em 26 set. 2020.
[9] PACHECO, Ronilso. A Teologia Negra no Brasil é decolonial e marginal. CrossCurrents, v. 67, n. 1, (p. 233-242) 2017. p. 234.
[10] Como, por exemplo, OLIVEIRA, 2015 e PIPER, 2012.
[11] GUIMARÃES, André. Jesus: exemplo de resistência e esperança para promoção de direitos e vida do povo negro. PACHECO, Ronilso; MOURA, João Luiz (orgs.). Jesus e os direitos humanos: porque o reino de Deus é justiça, paz e alegria. Rio de Janeiro: Vlado, 2018. (p. 59-72) p. 66-67.
[12] ROMANO, Giovanna. Datafolha: Mulheres e negros compõem maioria de evangélicos e católicos. Veja. 13 jan. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3czy00X. Acesso em 26 set. 2020.
[13] OLIVEIRA, Marco Davi de. A religião mais negra do Brasil: por que os negros fazem opção pelo pentecostalismo? Viçosa: Ultimato, 2015.
[14] Ouvi essa expressão em uma palestra do dr. Voddie Baucham a respeito do racismo, disponível em: https://youtu.be/Ip3nV6S_fYU. Acesso em 25 set 2020.
[15] BRADLEY, Anthony B. Liberating Black Theology: The Bible and the Black Experience in America. Wheaton: Crossway, 2010. p. 119.
[16] CONE, 1990, p. 127.
[17] Essa ideia do peregrino que se apaixona pela estrada e se esquece do horizonte eu ouvi do teólogo Igor Miguel. Infelizmente não pude encontrar uma fonte para referenciar.
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